domingo, 10 de junho de 2012

Lágrimas passageiras


Quando entrei no ônibus, já sabia que não teriam cadeiras vagas. Após passar pela roleta, comecei aquela busca, que todos os bons passageiros de ônibus fazem, atrás de um local para sentar e descansar as pernas. Mapeei do começo ao fim os 40 lugares e, para minha surpresa, tinham mais bancos vazios do que eu imaginara. Optei por um que estava mais ou menos um metro à minha frente, perto da porta, ao lado de uma mulher que estava sentada do lado da janela e que, pela agitação dela, havia subido uma parada antes de que eu havia entrado. 
Quando fui me aproximando, tive uma sensação de asco ao ver aquela mulher. Deveria ter por volta dos seus 35 anos, não era uma das mais gordas que eu já encontrara. A pele dela tinha uma cor característica de pessoas que passam anos expostas ao sol. Pelas feições dava logo para perceber que ela um dia foi branca ou clara, mas a vida a tinha deixado daquela cor. Quando olhei os cabelos, que começavam pretos e terminavam mais claros nas pontas, percebi algo semelhante à uma neve. Caspas, bem maiores do que as que eu já vira na vida e no instante que eu olhei, a mulher levou a mão à cabeça e coçou-a em três rápidos movimentos. Como já havia me encaminhando àquele banco e seria muito 'preconceituoso' da minha parte ir para outro banco por 'nojo' daquela mulher, acabei sentando ao seu lado. Nesse intervalo o ônibus não andou mais que 1 km. 
Sentei com um pouco de receio ao lado da mulher. Pensei logo que ela era nojenta, mal cuidada... Essas coisas que a gente pensa irracionalmente. Percebi, com um tempo, que, mesmo com o minúsculo espaço disponível, eu havia sentado afastado dela, deixando um espaço relativo entre nós.
 A mulher só olhava para fora, com olhar vazio.
 Enquanto ela estava com o rosto virado para a vida do lado de fora do ônibus, continuei a analisá-la detalhadamente. Estava com uma blusa branca, com algumas manchas e tinha uma sacola plástica, daquelas feitas dos piores materiais(de forma que se via pontos mais espessos sobre a superfície acinzentada do plástico), por sobre as pernas com as mão em cima. Em uma das mãos havia um celular vermelho, daqueles mais populares. Mas foi quando eu parei para prestar atenção nas mãos que eu vi como aquela mulher era sofrida. As mãos dela eram mais escuras que o restante do corpo e estavam, de tão ressecadas, com um aspecto brilhoso. As unhas, umas com esmalte, outras não, estavam com um aspecto amarelado. 
Enquanto ela fazia alguns movimentos com o celular e segurava a sacola no balanço do ônibus, a pele dela se encolhia e se estendia de forma que, quando se contraía, forma uma série de vincos de tão ressecada que estava. Parou de olhar a janela e se voltou para dentro do ônibus. Olhou o celular. Aproximou-o do rosto e leu algo que minha vista curiosa não mapeou. Enquanto ela olhava o celular, espiei rapidamente dentro da humilde sacola que havia em suas pernas. Ao que me pareceu, haviam apenas roupas dentro, uma calça jeans, que me parecia ser infantil por ter um bordado de carro, e outras camisas. Deu até para saber que estavam lavadas quando cheiro de amaciante exalou. Quando ela voltou as mãos à sacola, acariciou-a demoradamente como a gente faz quando quer bem a algo. E se voltou para a janela. 
Abaixei-me para ajeitar algo nos meus sapatos, ainda olhando para a janela, e vi uma gota de lágrima escorrendo por sobre o rosto sofrido daquela mulher. Subitamente aquilo me causou um choque, mas continuei com meu movimento e fiz o reparo necessário nos meu cadarços. Pensei que poderia ter sido apenas uma 'impressão' minha. Quando voltei à posição inicial, tive certeza que a mulher estava chorando muito silenciosamente. Parou e olhou o celular novamente. Os olhos inundados por um líquido denso percorreram algumas poucas linhas e lágrimas, pesadas como cachoeiras, despencaram. Fiquei tão perplexo em ver aquilo. Não me venha com lágrimas e promessas, tenho um coração mole mesmo.
Meu Deus, que angústia aquela mulher estava passando? tentei ler algo com meus olhos curiosos no celular, mas nada consegui. Agarrou a sacola com mais um pouquinho de força e olhou o celular novamente... Agora ela estava chorando mais do que a um minuto atrás. Será que foi uma traição? ela ta olhando um SMS... Ou será que algum parente próximo faleceu e ela está relendo a notícia? Ou será que o filho dela está doente? Logicamente essa calça que está nessa sacola é infantil e masculina... cogitei uma possibilidade maior de serem problemas de saúde, pois ela estava indo para a zona norte, onde ficam os mais famosos hospitais públicos e privados. A angústia me consomía. Naquele momento, todos os meus 'pré-conceitos' se esvaíram e eu percebi o quão grotesco eu estava sendo. Ela era apenas mais uma vítima da vida. Ninguém seria daquele jeito pelo simples fato de querer. 
Ela apoiou a cabeça no vidro e olhou o céu. Por alguns momentos vi o reflexo feliz daquele céu azul naquelas lágrimas tristes. Como eu queria dizer algo a ela. E eu juro que ensaiei. Meu Deus, mas o que dizer a uma desconhecida que estava chorando, ao meu lado, no ônibus? Sei lá, e se ela achar que eu estou querendo me meter na vida dela? Tudo pode-se esperar de uma pessoa ferida. Olhei de relance, novamente. Agora ela soluçava baixinho demais para qualquer outra pessoa ouvir, e tirava as lágrimas do rosto com as sofridas mãos. Sabe, eu queria por um momento dizer a ela que não se preocupasse, que por mais difícil que fosse aquilo que ela estava passando, ia dar certo. Ensaiei novamente um texto, mas nada saiu. Fiquei tão angustiado com a impessoalidade daquele momento. A que ponto chegamos? 
Eu queria dizer a ela que não importava o que fosse, aquele ser que estava do lado dela, ao contrário de muitas outros, se importava com ela e, naquele momento, torcia para que tudo dela desse certo, que todas as angústias dela acabassem, que tudo fosse resolvido, que ela pudesse sorrir. Mas não me atrevi a dizer nem meia palavra. Ao ponto que chegamos hoje, falar qualquer coisa a uma desconhecida chorando, poderia ser invasivo e até desrespeitoso, olha só. Que diabo de espécie é essa humana? Morro e não me acostumo com essa impessoalidade urbana.
Mesmo afogado nos meus devaneios percebi que já chegara a hora de descer. Ensaiei pela ultima vez aquelas palavras nunca ditas. Levantei-me, ainda com olhar fixo nela e desci pela porta que estava atrás da gente. Do lado de fora, olhei e a vi através do vidro, chorando ainda mais. Acho que com a minha ausência ela se sentiu mais liberta e se entregou profundamente às lágrimas.
Comentei com uma colega que me acompanhava, enquanto andávamos para a esquina:

- Você viu? aquela mulher do meu lado estava chorando...
- Estava? não vi! você não disse nada a ela? 
- Não. Tive receio de 'me meter na vida dela'.
-Pior que do jeito que o mundo está hoje é o que pode acontecer mesmo.

O ônibus dobrou à direita e passou ao nosso lado na esquina. Ainda pude ver, pela ultima vez, aquela mulher e suas lágrimas passageiras. 


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