quarta-feira, 20 de março de 2013

Stop. A vida parou ou faltou energia?


16 horas :23 minutos : 39 segundos - Quarta feira. 
A sala de aula com a excêntrica professora falando escurece e assusta os sonolentos alunos.
Stop. Faltou energia.
Parou o trabalhador que manuseava uma incisiva furadeira. Parou a dona da lanchonete fazendo o suco de maracujá. Parou o procedimento cirúrgico na clínica que, por negligência, não tinha gerador. Parou a novela para a senhora que assistia a TV depois da exaustiva rotina doméstica. Parou o carinha que fazia um milk-shake. Parou a trabalhadora desgastada que engomava uma pilha enorme de roupas. Parou o Facebook para o menino que acessava a internet através da Wi-fi. Parou transições bancárias pela internet. Parou a batedeira da mulher que batia massa para o bolo. Parou o ar-condicionado que refrescava o escritório. Parou a máquina que mexia o concreto na obra. Parou o atendimento odontológico por falta de luz. Parou a geladeira que conservava a comida difícil da família humilde. Parou a máquina que pirateava cds. Parou a balança na hora que o obeso se pesava (nessa hora, ele sorriu). Parou a maquina de emitir nota fiscal da farmácia. Parou a bomba de combustível. Parou a mulher que costurava a roupa de grife que você só vai poder usar daqui a um ano. Parou o elevador de ir e vir. Parou o fogão que ascendia o fogo à energia. Parou a esteira da acadêmia. Parou o rádio que animava os pedreiros (eles tiveram a oportunidade de olhar mais para a beldades que passavam). Parou a fisioterapia com a máquina. Parou a cancela do estacionamento. Parou a impressora. Parou o sistema. Parou o refrigerador do supermercado. Parou o bebedouro de gelar a água. Parou o microscópio em que o pesquisador descobria algo singular. Parou a estufa. Parou o motor de puxar água. Parou o portão de abrir. Parou a maquineta de registar os livros da biblioteca. Parou a máquina de café instantâneo. Parou o alarme ultra sensível. Parou o cerca elétrica. Parou a projeção na dificílima defesa do TCC. Parou a máquina de lavar roupa. Parou o experimento sensacional no laboratório. Parou de escrever o artigo o pós-graduando. Parou a porta automática do Shopping. Parou de girar o manequim na loja. Parou a escada rolante. Parou o termômetro enorme da rua. Parou o semáforo.
Uma onda de silêncio assustadora  de silêncio se amanou por sobre a cidade. Mas não durou muito.
Os motoristas, no entanto, não pararam. Os que estavam no sentido em que o semáforo estava verde prosseguiram. Os que estava no sentido em que estava fechado perceberam e começaram a proclamar palavrões e a se infiltrar no meio da manada, por assim dizer, que vinha no outro sentido. Acidente. Carros com latarias amassadas. Gritos. No semáforo da esquina o motoqueiro arriscava barulhosamente sua vida ao passar em alta velocidade entre os carros, para ficar enganchado no próximo semáforo que estava a 200 metros dele, claro. Parou o ônibus enorme. Arrancou a placa da esquina o ônibus que tentou dobrar em meio aos carros ziguezagueados e dobrou mais por dentro. Buzina um, dois, três. O vírus se espalhava. Buzinavam 40. Buzinavam 100. Motos se infiltravam como água entre brechas dos carros. Outro acidente à 500 metros do primeiro. Gritos. Km de engarrafamento em um trânsito entramelado como a trança da garota bonita que foi atropelada na calçada pelo motoqueiro insano que tentava burlar o engarrafamento. Cinco pessoas corriam para socorrê-la. Outro foi quase atropelado no outro lado da rua. Foi esmagado o pedestre que passava entre dois carros e que um deles despercebidamente avançou. Ficou gritando a ambulância com a grávida em trabalho de parto... Francisco nasceu em meio ao caos. Ficou preso o carro forte empanturrado de dinheiro. Ficou gritando a ambulância do SAMU que não conseguia socorrer os chamados. Bateu o carro a menina que tinha tirado a habilitação na semana anterior e nervosa trocou o acelerador pelo freio. Reclamou o trabalhador que passara o dia se desgastando em uma construção e agora estava enjaulado dentro de um ônibus numa reprise do trânsito indiano. Reclamou o estudante que só dormiu duas horas na noite passada e, justo no dia que tinha tempo para dormir, ficou inapto no mar de buzinas, digo, engarrafamento. 
Chorava o menininho apavorado na calçada. O idoso caquético admirava abismado a êxtase anti-altruísta viral que endoidecia a cabeça das pessoas. Pedestres atordoados. Dois estudantes polidos riam da cena. Barulho. Monóxido de carbono. Fumaça. Buzina. O vírus do caos se espalhava. 
Tenho certeza que qualquer um desses diretores que criaram séries apocalípticas vivenciou uma situação dessas e se inspirou para criar essas situações caóticas fictícias com fundo de verdade. Paradas de ônibus super lotadas. Centenas de km de engarrafamento entrançado. O carro burlando o congestionamento passando por cima da calçada e caindo e um, na outra rua, ainda maior (bis, bis, bis). 
Chegou então a tropa de choque. Fortemente amarda. Um policial de uns dois metros de altura com uma arma enorme na mão gritava com um motorista para aprumar seu carro. Os outros, assustados tentavam aprumar os seus. Cinco outros policiais desemaranhavam o trajeto do outro lado. Dez outros nos outro semáforo. 
- "e desobedeça, neguinho, para ver tiro no mei dos peito!"
Falava o trabalhador admirando a braveza do  policial.
Simularam um semáforo durante uns dez minutos. 
Play. Voltou a energia. 
O vírus ensandecedor era aniquilado da cabeça das pessoas. A máquina começou a emitir a nota fiscal. A menina bonita atropelada foi socorrida. O ar condicionado voltou a funcionar. A projeção voltou e o tenso defensor do TCC pôde mostrar seu trabalho. A porta do shopping voltou a funcionar e a escada rolante também. Voltou a wi-fi, mil likes no facebook, mil comentários sobre o caos. Reiniciou-se o atendimento odontológico. O procedimento cirúrgico pôde ser concluído. Play nas transações bancárias. O suor foi se evaporando conforme o ar condicionado resfriava os disparantes neurônios no escritório. Para alegria da família, a geladeira voltou a funcionar. O obeso viu o peso e lamentou de tristeza. Voltou a TV da senhora que conversava com a vizinha que não conversavam daquela maneira a anos. A água voltou a gelar. A bomba voltou a encher de gasolina o tanque do carro. Voltou a tocar o rádio com uma romântica música para os pedreiros. Voltou a trabalhar a costureira, o estagiário, o médico, o fisioterapeuta  o pirateador de cds...
Aos poucos a vida voltada. Aos poucos o fluxo nas artérias da cidade abandonava os trombos e prosseguia. Aos poucos o menino parou de chorar. Aos poucos a vida voltava à desregrada e ensandecida homeostase.
Play. A vida iniciou ou a energia voltou?

- É isso que dá! a danada da Dilma baixar o preço da energia... o pessoal vai usar mais e agora vai ficar  faltando direto! 
Comentava o indignado trabalhador, atravessando a rua, com outra pessoa que nunca havia visto na vida.

sexta-feira, 15 de março de 2013

Clamor



Um vizinho já havia batido na porta e outros dois chegavam, no meio da noite, assustados.
...

Ele só queria um tempo para arrumar sua vida. Sua medíocre vida. Queria um tempo para arrumar seus cabelos no corte em que desejava. Queria um tempo para arrumar seu relacionamento que saia pela tangente que ele jamais imaginou sair. Queria um tempo para lavar as roupas sujas de meses, aquelas que deixou para depois, depois e depois. Queria um tempo para ler todos os livros que comprou e terminar aqueles que começou. Queria um tempo para matar o rato que a alguns meses petiscava suas caras comidas. Queria um tempo para organizar seu quarto, sua cama bagunçada sempre, seu roupeiro minúsculo e ridículo, sempre com roupas caindo. Queria um tempo para limpar o apartamento. Queria um tempo para tirar da geladeira todas aquelas coisas que não mais servem, mas que a enfeitam há semanas. Queria um tempo para conversar com as pessoas que gosta sobre o que gosta. Queria um tempo para organizar sua agenda pessoal, que mais parecia uma parede de presídio cheia de rabiscos e datas passadas. Queria um tempo para lavar aquele sapato que descolou e que ainda tem jeito. Queria um tempo para falar às pessoas o que realmente acha da belíssima hipocrisia de cada uma delas. Queria uma tempo para retirar as cortinas velhas da sala. Queria um tempo para colocar fotos novas nos porta retratos. Queria um tempo para ouvir todo os CDs que baixou e analisar detalhadamente e poeticamente todas as letras e divagações. Queria um tempo para aprender a gostar mais de poesia. Queria um tempo para organizar sua mesa de trabalho, que mais parece uma velharia. Queria um tempo para organizar todas as pastas, unidades e drivers do seu computador. Queria ter um tempo para ativar o antivírus e mover para quarentena todas aquelas ameaças. Queria um tempo para cozinhar o legume preferido. Queria um tempo para terminar o projeto que nunca terminou. Queria um tempo para assistir aquele filme perfeito que o amigo passou no ano passado, mas que até hoje não viu nem os primeiros cinco minutos. Queria um tempo para discutir com o porteiro do prédio tudo o que observa de errado há anos. Queria um tempo para dormir demoradamente e deliciosamente um dia inteiro de chuva. Queria um tempo para encher a cara da melhor bebida que o mísero salário pudesse comprar. Queria um tempo para beber, ao menos, o resto de vodca barata que estava na geladeira, há dois meses. Queria um tempo para retirar todos os cravos que sujavam o seu rosto. Queria um tempo para comprar roupas novas. Queria um tempo para comprar uma maquina nova de lavar. Queria um tempo para comprar chocolate. Queria um tempo para fazer a receita de cappuccino alucinógeno particular. Queria um tempo para bater na porta do vizinho e dizer que a TV dele incomodava e muito. Queria um tempo para assistir sua série favorita, que lembrava sua adolescência. Queria um tempo para baixar todas as séries que estão em uma lista invisível, mas nunca foram, ao menos, pesquisadas. Queria um tempo para ir no Fast food comer a maior gordice que conseguisse. Queria um tempo para lamentar sua percas particulares. Queria um tempo para terminar de escrever o livro que não passou da décima lauda. Queria um tempo para trocar todos os livros velhos e inúteis em livros velhos e inúteis no sebo. Queria um tempo para ir ao show do seu cantor favorito e virar bicho. Queria um tempo para adotar um animal de estimação. Queria um tempo para matar o ninho de baratas que estava no forro do banheiro desde que chegou. Queria um tempo para limpar a área de serviço como merece. Queria um tempo para resolver mentalmente seu relacionamento. Queria um tempo para fotografar a mensagem social estampada em grafiti no muro que vê no caminho de casa. Queria um tempo para chorar, desobstruir tudo o que foi obstruído com mágoas ressecadas. Queria um tempo para ir na balada e pegar todas, voltar bêbado e acordar morrendo de ressaca moral. Queria um tempo para fumar um cigarro. Queria um tempo para terminar de desbotar a camisa que recebeu um pingo acidental de água sanitária, mas que ficou legal. Queria um tempo para ajeitar a porta amassada do carro. Queria um tempo para procurar o posto de gasolina mais barato. Queria um tempo para viajar e rever os familiares. Queria um tempo para conhecer as praias que sempre sonhou. Queria um tempo para aprender a tocar novos instrumentos. Queria um tempo para esvair. Queria um tempo para fugir. Queria um tempo para...

Um grito gutural, animalesco e agoniado saiu de suas entranhas e durante alguns longos segundos preencheu o cortante silêncio, enchendo o prédio inteiro de pavor, medo, agonia e falta de tempo.

 Achou o seu tempo.

quinta-feira, 7 de março de 2013

Só enxergamos o que conseguimos


Rodeados de felicidade, daltônicos por tristeza. Vivemos numa busca incansável pelo feliz que já vivemos, mas que falta colírios ou óculos escuros o suficiente para enxergarmos. 
Estes dias, no supermercado, mais precisamente na fila para pegar míseros gramas de presunto e queijo em fatias, avistei meio que de longe uma professora do primeiro período da faculdade. Vestida sem o quadrado jaleco branco, tinha um aspecto mais jovial. Ela estava em um daqueles enormes refrigeradores abertos do super mercado e analisava, ponderava e escolhia alguns entre diversos tipos de queijo empacotados à pressão em embalagens excêntricas. Mas ela não analisava apenas, ela A-N-A-L-I-S-A-V-A detalhadamente e contentemente gramas, calorias, nutrientes e qualquer coisa supérflua que possa ser levada em conta como quesito de escolha entre diversas embalagens com queijos idênticos. Achei tão estranha aquela alegria toda em escolher queijos. Por favor! Eu estava naquela fila com um olho aberto e outro fechado de tanto sono e cansaço, e, ainda por cima, entediado com a idosa que estava à minha frente resmungando pela demora... como alguém poderia ser feliz escolhendo, demoradamente, queijos?
Neste exato instante, chegou um cara ao lado dela. Só o bíceps dele dava duas vezes o meu peso, à saber. Colocou levemente a mão por sobre a silhueta afilada dela e encostou de leve os seus lábios no pescoço dela. Não teve como conter. Um riso puro e uma espécie de espasmo em onda percorreu o seu corpo. Sem tirar o time de campo e sem dar espaços para maiores reações por parte dela, logo ele opinou sobre qual dos dois idênticos queijos ele preferia. Rindo, ainda, ela o olhou desconfiada e indignada pela perspicácia dele em saber qual o melhor queijo mesmo estando longe durante todo o demoroso tempo em que ela passara escolhendo. 
Tudo estava minunciosamente explicado. Quatro letras, uma massagem moral, uma anestesia geral e um pedaço do melhor queijo: amor. Mais que amor. Nove letras, uma massagem moral, um opioide de longa duração, um parentese para fazer par com o seu e dois pedaços do melhor queijo: casamento. Faziam as primeiras compras juntos, por certo. E vejam só... felicidade... quanta felicidade.

Ao meu lado, a menina adolescente sorria enquanto ouvia nos seus estéricos fones de ouvido: " [...] Vamos viver, vadiar... O que importa é nossa alegria... Vamos viver e cantar, Não importa qual seja o dia..." Grande Chorão, seria capaz de reconhecer esses versos até em libras. Vejam só... mais e mais felicidade.

Na sessão de doces e biscoitos, o menino, já obeso, aperreava a sua mãe, também obesa, por mais e mais biscoitos. 
- Só mais esse mãããe! 
E a mãe com uma cestinha cheia de gordices se mantinha na firme e contrária posição.
-Não, João!
Ele insistiu mais uma vez:
-Sóóó eeesse, o último! vai, vai, vai, vai! 
Fez aquela carinha irresistível, semelhante ao Gato do filme Shrek. O instinto maternal não aguentou e se esfacelou como um castelo de cartas em meio à um vendaval. 
- Certo, certo, João! Esteja ouvindo: O ÚLTIMO!
O menino abraçou o biscoito como se estivesse abraçando o pai que passara anos em uma guerra e voltava agora sã e salvo. A mãe virou-se e deu um escondido sorriso de felicidade, sem que o menino visse, para "não perder a moral".  Sorrisos e... mais felicidade.
Já na fila para pagar as compras, vi uma mulher passar com uma caixa bem grande, até. Tinha a cara de quem carregava a felicidade no bolso. Ou nas mãos, que seja. Chegou ao caixa, com um caloroso sorriso, abriu o recipiente de papelão e começou a tirar, quase que magicamente, uns 20 ovos de páscoa, do mesmo tamanho, porém de diferentes cores e personagens (Iam desde a Barbie, Jolie, até o Ben10 e Toy Story). Sorria ao tirar os ovos de chocolate e sorria, ainda mais, diante da surpresa reação da moça que estava no caixa. A possuidora dos ovos tinha, no máximo, 25 anos, parecia ser de classe média e estar involucra em um espírito de gratidão encantador. Dava até para imaginar quantos futuros sorrisinhos passavam na cabeça dela enquanto revia seus mágicos objetos de sorrisos. Vejam só... felicidade. Felicidade presencial, felicidade encaixada, felicidade recíproca. Felicidade minha em vê-la feliz por fazer alguém feliz. 
Ponham seus óculos alucinógenos ou seus caleidoscópicos colírios de olhar para o interior. Deem-se ao gosto de vivenciar a felicidade presenciada, saibam estar rodeados por ela e reconhece-la, eduquem seu daltonismo com tropismo para a tristeza.

Quando já pagava minhas compras, ouvi no caixa ao lado:
- Mããããe, só mais esse chocolate, por favorzinho!
-Não, João!
-Mããããe! só mais esse! só mais esse!