sábado, 31 de agosto de 2013

O Sábado do Cícero


Este sábado, dia 31 de agosto, foi um dia que finalizou a longa espera de um público que aprecia composições minimalistas e com palavras excessivamente carregadas de significados: foi lançado oficialmente o segundo CD do cantor Cícero.
Para fãs que, assim como eu, o acompanham desde o seu primeiro registro, intitulado Canções de Apartamento (e que já foi citado em algum post desse blog) este sábado foi de espera. No entanto, ao apreciar o produto motivo da nossa expectativa, percebemos que qualquer tempo que esperássemos por isso, ainda estaria dentro dos limites, pois a obra é de um primor esplêndido e é digna de fazer qualquer um aguardar.
O próprio Cícero citou por aí que a sonoridade do disco remete àquele horário no fim da tarde em que tudo fica em paz, nem escuro, nem claro, nem quente, nem frio (eu, particularmente sou apreciador nato desse momento). Como ele mesmo afirmou, este momento dúbio é uma metáfora sobre sua personalidade e as músicas desse disco são um pouco disso.
De fato, ao se ouvir as canções, não tem como não lembrar de uma tardinha qualquer por aí, na beira da praia ou não, quando o sol de maduro já caiu e a lua com preguiça ainda não apareceu e quase tudo que tinha para acontecer naquele dia já aconteceu. Uma estranha onda de calmaria preenche o céu juntamente com um degradê lindo que parece aflorar nosso sentimentalismo e trazer à tona as angústias, medos e expectativas que somos nós. Geralmente essa é a hora que temos tempo de ser nós mesmos, quando não necessitamos de incorporar nosso personagem do trabalho ou das nossas outras obrigações diárias. E, sem dúvida, a cada verso dessa obra, nos achamos e vemos surgir dentro de nós, a partir dos nossos ouvidos, toda a sensibilidade capaz de sentir tudo aquilo que não percebemos que sentimos, mas que em meio a palavras, dedilhados de violão e uma percussão primorosa podem ser encontrados.
Parece, aparentemente ser um disco mais 'limpo', com uma sonoridade mais centrada em dedilhados, sem grandes emoções, no entanto, isto é algo completamente subjetivo e vai da capacidade de cada atento - ou não- ouvinte de sentir.
O que acontece, na verdade, é que este é um disco repleto de pequenas chaves e fechaduras que só com o escutar, ao longo do tempo, vamos descobrindo, abrindo novas portas e conhecendo novos territórios aonde nem imaginávamos que existiam. Nisto, este disco completamente se assemelha com seu antecessor - Canções de Apartamento- , onde a cada nova escutada, dependendo da frequência sentimental do ouvinte, um novo som é equalizado, um novo antigo verso faz sentido e um vocal surge trazendo uma alforria para nossas brigas internas. Esta é uma das partes mais incríveis de se escutar Cícero: o disco é sintonizado de acordo com nossa frequência sentimental.
Abstrações extremamente casuais e momentâneas parecem ter sido captadas em câmera lenta e traduzidas em música e este é, talvez, o motivo de causar o sentimento de "preferia o CD anterior" que observei nas palavras dos fãs, nas redes sociais. Diferentemente das músicas do primeiro registro, em que ele canta versos mais digestíveis a primeira escutada, este traz versos menores, compassos mais curtos, trocadilhos mais subjetivos e uma obra, consequente, com um nível mais elevado para ser degustada.
A incrível faixa Ela e a Lata, por exemplo, parece ter sido exacerbadamente pensada e do título ao ritmo - semelhante ao do veterano da MPB Gilberto Gil - transcreve uma poesia medonha que só é mostrada ao ouvinte capaz de ouvi-la. São tantos elementos que compõem a mensagem que o Cícero quer passar, que até a sonoridade com um tropismo para o lado do Gilberto Gil, traduz a cara social desta canção.
Não se enganem, tudo foi pensado.
 Ao utilizar de versos como "à burulhar, ela / as perna magr'Ela, / vida amar'Ela / ô vida má.../ Vou sair pra passear...", transgredimos em poucos minutos através da cena de um observador - o eu lírico - vendo uma provável catadora de latas.
 Durante a canção, ele analisa todo seu aspecto mórbido ( como visto no verso "as pernA magr'Ela" - até o cuidado de tirar o S da primeira palavra foi tomado para traduzir o vocabulário daquele ser esfarrapado a ser observado, refletindo a classe social extremamente renegada a que ela se encontra), conclui que a vida "a ama" para não leva-la dessa efêmera existência de vez ( como pode ser observado no verso "a vida amar'Ela"), na sequência temos o trecho "ô vida má..." que remete ao quanto a vida pode ser má com algumas pessoas (nesse momento, podemos presumir que o eu lírico se sente mal por presenciar aquele estado desumano), no entanto, após mais alguns segundos de melodia o verso "Vou sair para passear" com tom despreocupado é disparado pelo eu lírico e a grande jogada dessa música talvez está nesse minúsculo verso que traduz o egoísmo humano (o expectador foi capaz de observar a condição subumana a que o outro - a catadora - se encontrava, se sentiu mal, mas preferiu sair para passear e esquecer daquilo à fazer algo para mudar a realidade dela).
São chaves e fechaduras assim, que quando encaixadas, mostram a nós o nível elevadíssimo de composição a que Cícero chegou e que enche o nosso Sábado.
A abstrata faixa Asa Delta nos mostra uma espécie de poesia musicada - poesia esta que no encarte adquire forma de asa delta, realmente- e é formada por uma abstração tão íntima e tão metafórica para a existência, que só os ouvidos mais atentos serão capazes de captar o silêncio inicial da faixa sendo irrompido por um barulho mais urbano como um pouso de um voou de Asa Delta. É uma faixa repleta de minúcias que literalmente sai do mundo da música para o céu nas ultimas palavras cantadas: "Eu voo..."
A canção Fuga Nº4 nos mostra uma divagação sobre o mundo e as verdades ou ausência delas. A poesia se torna palpável no verso "O destino, o tempo inteiro envergando a verdade" em que no encarte está realmente como se fosse um sólido envergado, sendo o verso "A verdade dorme cedo" a base que sustenta todo esse envergamento. Você tire suas próprias conclusões, a partir disto.
Não só as poesias abstratas merecem destaque nesta obra. A sonoridade também, uma das marcas do Cícero, é bem ímpar. Na faixa Frevo Por Acaso, por exemplo, palmas foram sabiamente encaixadas e se tornam uma percussão incrível. Na faixa Para Animar o Bar, um ritmo mais alegre - remetente aos Los hermanos - se faz som e acaricia o ouvido do expectador.
Além disso, sábias utilizações das palavras podem ser encontradas por toda a obra - característica essa que, na minha opinião deixa a obra mais rica e rompe os limites entre quem escuta e quem compôs. A doce canção Por Botafogo, por exemplo, tem um verso bem notório: "Mas se o tempo der, posso avarandar seu tédio..." que remete às características agradáveis e livres das varandas 'avarandando' o tédio e tornando este mais feliz e suportável.
Definitivamente, a áurea mágica e misteriosa do fim da tarde de um sábado - imagem sinestésica que compõe a própria capa do CD- foi transcrita em música e isso torna-se mais perceptível ainda ao se degustar essa mantra neste horário, com um espirito livre e ameno. Recomendo... Terapia melhor, não há.
São por estes e muitos outros incríveis detalhes que concluímos de vez que esta é uma obra, no mínimo primorosa e meticulosamente montada para o ouvinte.
Sabiamente, Cícero soube combinar diversos elementos com versos curtos - extremamente carregado de sentidos - resultando em algo mais maduro e "pé no chão" que seu disco anterior, no entanto, que exigem uma maior capacidade e sensibilidade por partes dos ouvintes.
Quase que com certeza, Cícero vai continuar a estrelar a lista das principais promessas da Música Brasileira e, se souber usar ainda mais do seu incrível talento, vai continuar a nos presentar com outros discos tão mágicos e minimalistas quanto esses dois primeiros. Admito que torço muito por isso.
Outra coisa bastante legal e bem característica dele, é a disponibilização GRATUITA do seu trabalho para download. Se você não conhece ou não tem um desses dois CD's dele, basta entrar no site www.cicero.net.br e se deliciar com essa música que acalma a alma.