segunda-feira, 20 de fevereiro de 2012

O sonho de Amália


Amália era uma anciã bem desgastada, viúva, com muitos filhos e já tivera uma vida muito conturbada. Sempre foi daquelas pessoas que reclamam ao acordar e ao dormir... Tinha o mal da maioria daqueles que ultrapassam os 60; o desgaste cerebral devido as coisas que passou e a pertinência de achar que sempre estava correta. Por mais que fosse velha e entrevada, mantinha uma rotina de afazeres e reclamações diárias. Acordava bem cedo e passava muito tempo com olhos vazios, na frente do espelho, procurando a Amália que um dia habitou o corpo dela. Quando jovem, nunca foi dessas que aproveitava ao máximo tudo que surgia e esse era um dos motivos de tanta reclamação. O problema é que ela não aproveitou a vida porque reclamava muito e agora reclama porque não aproveitou. Os poucos filhos que ainda a visitam já sabem o que os espera ao cruzar a porta da antiquada casa; palavras amargas de alguém que nunca soube dar o valor correto aos devidos momentos da vida.
A aparência de Amália refletia o seu interior. O cabelo que tinha ficado branco antes do devido momento agora tinha uma cor amarelada, com fios mais acinzentados que realçavam o tom velho e opaco... o cabelo, que começava liso no centro da cabeça, ainda pendia sobre as orelhas em forma de cachinhos e adquiria um formato pontiagudo na nuca. A face era sofrida, os lábio rachados sempre com batons fortes. Rugas escuras e fortes se desenhavam ao redor dos olhos e encobriam a cor única que eles possuíam, a boca sempre estava com os cantos mais baixos como se formasse um parentese. As mãos tinha muitas manchinhas de uma cor marrom que subia para os braços. Nas unhas, várias camadas de esmaltes fortes se sobreponham e tentavam encobrir cantos descascados... o aspecto alto relevo era visível.
O maior desejo dela era morrer. Pedia que raios a partissem, carros a espedaçassem em um cruzamento, seu coração explodisse ou até mesmo que desse um sono pesado e ela nunca mais acordasse... morrer era o que bastaria. Achava que era a saída mais viável, era uma libertação. Muitas vezes escapara da morte e por isso se reclamava, achava que tinha sido tola ao desejar continuar viva quando teve a oportunidade de "partir desta para uma melhor". Entre suas fugas da morte estavam ; doenças, queda de escada, acidente de carro, naufrágio de um barco e outras mais. Todos os dias rezava para que Deus fosse bonzinho com ela e adiantasse seu dia.
Como já estava velha e a noção de higiene que uma dia tivera não era mais a mesma, os filhos se reuniram e decidiram que o filho mais novo iria ficar uns dias com ela. Era solteiro, trabalhava pouco... os irmãos o pagariam também. Trato feito. No primeiro café da manhã expôs a ele todas suas angústias e encerrou o ato teatral olhando poeticamente para o teto, com olhos vazios e pedindo que Deus a levasse dali naquele instante... ainda foi capaz de esperar algum tempo, com os olhos fechados, mas absolutamente nada aconteceu. Se recompôs, e voltou a beber o café amargo como a alma dela. De fato ela já fora destruída muitas vezes e era muito forte... dentro dela, um milhão de pensamentos e lembranças a corroíam e a única válvula de escape para todas essa combustão interna era sua boca. Amaldiçoava-se, tentava desmaiar de arrependimento por não ter feito certas coisas e de vez em quando dizia que seu coração fora embora junto com o seu marido. Falava da dor interminável de ter testemunhado um de seus filhos tirando a vida do irmão e choramingava o fato de alguns dos filhos restantes serem intrigados dela.
Certo dia passou a não sentir as pernas. Não enxergar nada... e uma súbita força exterior pressionar seus pulmões. Tentava gritar, pedir socorro, mas a agonia só aumentava. Começou a estremecer e sentir seu corpo morrendo aos poucos, as pernas, o tronco, até que ficou só a cabeça. Sentiu um lado da cabeça morrer, e piscava os olhos tentando procurar algo além da escuridão. Começo a pular na cama e a fazer um barulho estranho na entrada do pulmões... pulou várias vezes na cama, se debateu por alguns segundos, bateu a cabeça e lembrou do único filho que ainda estava com ela... da dor que ele sentiria... sentiu dor na única parte de sua cabeça que ainda estava viva... e lembrou de um milhão de coisas em um lapso de segundo. Nenhum ar entrava em suas via aéreas e ela já tinha parado de se tremer... a escuridão a puxou.
Respirou fundo e abriu os olhos. Reconheceu o barulho do ventilador ao seu lado e viu que estava em sua casa, na sua costumeira cama. Estava sonhado. Olhou as mãos para ter certeza, sentiu os dois lados da cabeça funcionando... mexeu as pernas... estava viva! que alívio... respirou fundo... e foi capaz até de sorrir. Logo no café da manhã soltou a pérola:

- Meu filho, sabe que não é bom morrer não !?
O filho tirou os olhos de seu sanduíche, parou e olhou perplexo para a mãe.
-Como assim, mãe? Não é o seu maior desejo atualmente?
A velha deu um raro sorrisinho e disse:
-Era... mas ultimamente pensei melhor e morrer não é bom não, viu? Mudei de ideia.
Deu uma respirada bem profunda para constatar o quase perfeito funcionamento dos pulmões.

Passou o dia calada. Desde o depoimento inusitado, o filho achou algo de estranho nela. Varreu o quintal com prazer, lavou o cabelo... vestiu a roupa menos velha... cozinhou um prato que há anos ela não fazia e lembrava a infância dele. Pediu ao filho para ir deixá-la na missa.

- Mas, mãe, você não me disse que detestava todas aquelas velhas mexeriqueiras que iam a missa e por isso não vai mais?
A velha respirou e respondeu:

- É meu filho, e tudo que eu falei está correto. Aquelas velhas são muito feias e fuxiqueiras... mas é por Deus meu filho, é por Deus!

O filho só foi capaz de sorrir. Antes de sair ela passou o perfume de rosas que só usava em ocasiões especiais e, por isso, o vidro estava completamente cheio. Ao chegar na missa, houve um silêncio mortal quando ela cruzou a porta principal de entrada.
Tinham duas velhas encostadas na parede de entrada, com seus guarda-chuvas floridos nas mão e comentaram:

- Ma ma mas mas MAS essa num é a Amália, Joséfa?
- Vixe minha nossa senhora, pois num é mesmo! Não era ela quem rezava pra morrer todos os dias, dizia que Deus era pouco caridoso com ela e já tinha até desistido desse negócio de igreja!?
- Se o espírito não me engana, é ela mesma! Hoje chove canivete!

Amália se confessou nesse dia, rezou 20 Ave-marias, 20 Creio em Deus pai, 20 Pai nosso e agradeceu por Deus ter sido mal com ela todos esses dias e ainda ter deixado ela viva.
Morreu 2 anos depois, após se reconciliar com todos os filhos e ter reformado a velha casa. Nesse tempo, reclamava muito por ter reclamado tanto ao longo de sua vida e agradecia a Deus a nova vida que estava levando.

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