sexta-feira, 6 de janeiro de 2012

Feliz aniversário contemporâneo


O horário já era chegado e os convidados começaram a aparecer. Amigos, familiares e amigos de amigos. A pomposidade da festa, que era pra ser simples, era vista de longe. Era pra ser uma coisinha de nada, "pra não passar em branco", como dizem os mais velhos, mas logo na chegada se via que era impossível ser simples. Tudo em cores róseas, como todas as garotas sonham. O bolo cheio de requinte, com centenas de detalhes feitos à mão davam um luxo à mesa, que junto aos docinhos mais modernos que se pode existir fechavam o visual "básico" e elegante que foi propositalmente pensado para a festa.
A família estava toda reunida. Do mais velho ao mais novo, todos participando da hipocrisia coletiva. Passavam na frente da mesa da aniversariante e olhavam-na, apenas, sem mais para o momento. A mesma família que passara o ano inteiro colhendo os frutos do trabalho dela, dominando-a e controlando-a, agora, fazia um festa para selar com um momento perfeito, a convivência "perfeita" que a família tinha. Os tios que passavam o ano colocando-a nos trilhos que eles construíam e regrando cada ato dela, nas frente dos convidados pareciam ter saído dos sonhos. Tudo se resumia a uma perfeição.
Os outros convidados se resumiam a amigos (os que resistiram a represália da família, claro) e aos ex-namorados, ex-quase-namorados e, quem sabe, futuros namorados, afinal, quando se mergulha no mar negro e intenso dela, é difícil se desprender de algo tão forte. Todos eram sorrisos. A mãe era pouco pra dar a atenção que ela queria dar, tudo para fazer a filha o mais feliz possível. Mal sabia a mãe, que felicidade não é algo pra querer oferecer de uma vez, violentamente, e sim um pouquinho todo dia. Já os convidados nem imaginavam que por trás de tantos sorrisos da menina, havia um rio de lágrimas.
 Ela, a estrela da noite, estava vestida em cetim importado e com um sapato de um salto altíssimo. A menina teve tantos sonhos atropelados, tantos desejos simples violentamente negados, tanto sofrimento imbuído em uma só vida, que aquele momento em que todos paravam e pareciam, ao menos, sentirem-se feliz com a sua medíocre presença fazia uma pontada de alegria, daquelas mais singelas, surgir em seu peito.
Mas foi na hora do famoso parabéns que aconteceu.
Ela estava rodeada por todos no meio da sala, atrás da enorme mesa detalhadamente elaborada para ela e do gigantesco bolo e foi olhando incisivamente nos olhos das pessoas presentes uma a uma, os sorrisos...
E, num lapso, ela teve um 'insight' e o coração deu uma batida muito forte. Um turbilhão de imagens vieram a sua mente de uma só vez. Todos os sofrimentos a que ela foi submetida durante a vida foram estampados bem a frente dela, como se fosse um cinema. Os choros, o trabalho doméstico interminável, as inúmeras proibições estupidas. Os pés dela tremeram brevemente e, nesse momento, a imagem da briga terrível que ela teve com a mãe, dois dias antes do aniversário, vieram a sua mente. A frase dita com todas as palavras: "EU criei você, EU mando em você, e VOCÊ me deve isso!" ecoou na sua mente com um efeito devastador. A pulsação estava frenética e os dedos trêmulos. Mais imagens execráveis foram lembradas: o desprezo que certas pessoas a davam, a ausência do pai, a adoção e desapego da mãe biológica ao dar ela, a sensação de ser inútil, a lembrança dos falsos aniversários anteriores, das inúmeras fotos que a turma de amigos possuía sem ela devido ao cárcere que ela vive.
Uma lágrima foi projetada no seu olho e a deixou com a visão manchada. A lágrima não chegou a escorrer, e nem ela deixaria, iria borrar a maquiagem.
 Depois de duas longas respirações e uma sensação de desorientação, ela começou a sentir percorrer no seu corpo um sangue frio. Aquele mesmo sangue que percorreu ela todos os dias de raiva e choro. Uma sensação prazerosa e estranha a preencheu. Ela já sabia de tudo. Como ela foi burra! Tudo levou-a a essa conclusão antes e só hoje ela percebeu conscientemente o quanto é tola! O corpo dela sabia, mas ela não sabia! Todos sabiam menos ela! Um instinto voraz e enlouquecedor de querer se jogar em todos, rasgar a  caríssima roupa acetinada, partir aquele bolo a pontapés e gritar a percorreu, mas ela controlou-se.
A sensação de alívio continuou a existir no seu corpo e foi nesse momento que ela virou todo o jogo.
Ela percebeu intuitivamente o quanto é forte e batalhadora. A pulsação que antes já estava forte, agora, chegava a uma frequência quase anormal. Meu Deus, como ela aguentou aquilo? Ela percebeu que era mais poderosa do que todas aquelas pessoas juntas. Outro jorro de lembranças vieram, mas dessa vez, dos momentos em que ela superava o trauma. Ela lembrou do momento que estava enxugando as lágrimas em frente ao espelho e passando um lápis nos olhos tão preto quanto o luto que ela estava pela sua adolescência matada, lembrou de quando decidiu se dar uma abraço, sozinha, para ela ajudar a ela mesma a superar tudo, lembrou das inúmeras vezes que ela disse a si mesma: "Não chore, um dia, você vai dar a volta por cima!"
Um estranho poder a percorria e ela quase que podia vê-lo emanando magicamente dos seus membros.
Nesse exato momento, a vela acendeu e a pessoa que esteve tentando acendê-la durante esse intervalo de tempo se afastou para dar espaço a ilustríssima aniversariante e um coro começou com a canção de parabéns.
Algo começou a tremer dentro dela, veio das entranhas, e se propagou como uma risada deliciosamente estérica no ar. Poucos ouviram a maliciosa risada, sob a voz de todos, enquanto cantavam parabéns. Ela sabia o quanto era explorada e o quanto todos eram falsos, mas ela era mais forte do que todos juntos e, agora, ela sabia disso.
Enquanto a canção do parabéns soava cantada pela voz uníssona de todos, ela simplesmente sorria e olhava para as próprias mãos abertas em frente aos olhos percebendo aquela magia saindo de sua pele. Que se danassem as fotos! Nunca ela foi tão feliz em toda a sua apática existência. O brilho nos olhos dela era contagiante. O pensamento fixo em sair definitivamente daquele local e abandonar aquelas pessoas e a certeza de que faria isso, custasse o que custasse a fazia sorrir mais e mais. Toda essa revolução interna merecia ser loucamente comemorada, pensou! E foi ai que ela percebeu que estava em uma festa, ou melhor, na PRÓPRIA festa! Nesse momento ela levantou a cabeça rapidamente, deixando os cabelos lisos volumosamente bonitos e ressaltando bem o batom vermelho, soltou os sorrisos mais sinceros da vida dela para a câmera e comemorou vigorosamente a sua existência por toda a festa.
Para as outras pessoas presentes, aqueles sorrisos e aquela felicidade violenta não passavam de uma "alegria de aniversariante", já pra ela, aquilo era, simplesmente, a porta de entrada oficial para a vida.

Fato à parte: esse foi o ultimo dia que as pessoas presentes viram a aniversariante.

2 comentários:

  1. Seus textos são bacanas.
    Estou te seguindo, me segue também? http://eublogando21.blogspot.com/
    Abraços.

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  2. uma bela estória, gostei bastante. abraço!

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